Entrevista/ Christian Schwartz
(jornalista e ensaísta)

Com o aos diários e à correspondência de Dalton Trevisan, biógrafo descarta a pecha de recluso atribuída ao biografado e afirma que o autor de “A polaquinha” viveu para ler e escrever obsessivamente

Uma vida discreta a serviço da construção de uma obra literária monumental. Assim foi a existência de Dalton Trevisan, afirma o jornalista e ensaísta curitibano Christian Schwartz, responsável pela produção da biografia do escritor. Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Schwartz finaliza o livro sobre Trevisan a partir de o inédito à documentação pessoal, inclusive os diários do autor de “A polaquinha”.


“Os diários revelam uma disciplina extrema e uma lógica de trabalho quase ritualística. Pequenas observações do dia a dia, relatos de encontros ou cenas ouvidas na rua, cadernos de notas que viravam esboços — tudo ali era matéria literária”, acredita Schwartz. Ele conseguiu, por meio da representante literária Fabiana Faversani, obter respostas de Trevisan ao longo dos últimos 18 meses de vida do escritor, que morreu em dezembro de 2024, aos 99 anos.

“Ele me autorizou a ler a correspondência pessoal e respondeu a várias perguntas por áudio. Gravou depoimento de mais de uma hora, ainda inédito, que foi essencial para o argumento do livro”, conta. “Mas estou sempre procurando fontes para além do acervo pessoal que permitam contar algumas histórias”, complementa o biógrafo. O lançamento, ainda sem título definitivo, está previsto para o final do ano. Leia, a seguir, a entrevista de Christian Schwartz ao Pensar do Estado de Minas.

O que é mais desafiador na produção e escrita da biografia de um escritor que viveu por quase um século?


Se estivéssemos falando de um autor menos singular que Dalton Trevisan, talvez o primeiro desafio fosse lidar com a vastidão de experiências acumuladas ao longo de cem anos: acontecimentos históricos, pessoas, gerações. Mas com o Dalton a dificuldade é outra. Ele teve uma juventude movimentada, intensa, mas muito cedo adotou uma rotina extremamente metódica e repetitiva. Fora da literatura, teve uma vida comum — era funcionário da fábrica da família, manteve um casamento longo, criou filhas. E essa rotina pouco variou ao longo das décadas. Conforme tenho dito nas conversas sobre a biografia, a impressão é que um dia dele em 1969 se parecia muito com um em 1989 ou 2009. Houve mudanças, claro: pessoas ao redor, hábitos abandonados com a idade, novos rituais.

Mas nada que justificasse um tratamento cronológico clássico para o biografado. O desafio maior foi justamente criar um ambiente narrativo que desse conta de como essa rotina discreta e constante sustentou a construção de uma obra literária monumental. Foram mais de 700 contos — e esse conjunto não é linear nem temático: é um verdadeiro labirinto. Um jogo de espelhos, em que imagens, cenas e tipos retornam transformados. A biografia não é um ensaio acadêmico nem uma cronologia da obra, mas um esforço de captar os momentos de inflexão, os episódios decisivos, e de mostrar como vida e obra, no caso dele, estão intricadamente entrelaçadas.

Na juventude até a estreia literária, o que foi mais marcante na vida de Trevisan?


A precocidade é o primeiro traço marcante. Entre os 14 e os 18 anos, editou o jornal Tingui. Pouco depois, já na Faculdade de Direito, fundou e dirigiu a revista Joaquim, entre 1946 e 1948. O segundo marco foi a longa viagem à Europa, entre junho e dezembro de 1950, aos 25 anos. Foram seis meses sozinho pelo continente. Ao voltar, casou-se, teve filhas, assumiu a vida adulta.

Mas o escritor ainda estava em formação — o estilo se decantaria ao longo da década seguinte, especialmente nas cartas trocadas com amigos como Otto Lara Resende, Carlos Castelo Branco e Carlinhos Oliveira, entre 1955 e 1959 – até a estreia nacional, em 1959, aos 33 para 34 anos, com “Novelas nada exemplares”. Acho importante essa agem: se Dalton, no início daquela década, já estava formado como pessoa, como homem, e, intelectualmente falando, já carregava as marcas que levaria para a idade madura, o desenvolvimento do estilo foi posterior à viagem à Europa

Como o próprio autor ajudou a consolidar a mística do Vampiro de Curitiba?


Foi em 1968, quando venceu um importante concurso nacional de contos promovido pela Fundepar, no Paraná. O prêmio era generoso: o equivalente a cerca de 200 mil reais hoje — valor inédito até então na literatura brasileira. Participaram mais de 3 mil autores, todos sob pseudônimo, cada um com três contos. Dalton venceu com textos que depois comporiam “A guerra conjugal” (1969).


Na época, seu último livro era “O vampiro de Curitiba” — e o apelido já circulava entre os leitores. Ao ser procurado por jornalistas após o prêmio, Dalton decidiu alimentar o mito. Com exceção de uma conversa sincera e notável com Luiz Vilela, que veio a Curitiba como repórter do Jornal da Tarde, ele incentivou os boatos, confirmou lendas. Decidiu usar a máscara como escudo. Minha interpretação é que fez isso porque escrevia de forma muito visceral e muito confessional. Acho que as pessoas não se dão conta disso.

Dalton não era simplesmente um espi)ão pelas ruas, pelos ermos de Curitiba: ele falava muito de si próprio, das relações familiares – e eu não me refiro aqui à “guerra conjugal”, simplesmente, seria uma ilação muito fácil; mas a família, o conflito familiar, essa história bíblica tão antiga (e Dalton era um leitor particularmente arguto da Bíblia, embora fosse ateu), essa exploração tão profunda da matéria-prima mais íntima da sua literatura podia acontecer e ar um pouco ao largo, enquanto as pessoas prestavam atenção na lenda do vampiro. Dessa forma, ele conseguia se livrar de ser pressionado a entregar alguns segredos da obra. O problema é que, ao alimentar o mito, acabou perseguido por ele. A imprensa ou a abordá-lo com o intuito de devassar sua vida — o que ele, naturalmente, detestava.

Nas cartas reveladas até agora, algumas publicadas pelo próprio Dalton em “Desgracida”, se destaca a relação de confiança que ele estabelece com o mineiro Otto Lara Resende. Como se deu esse vínculo e o que, para você, chama atenção na correspondência de ambos?


Foi a correspondência mais extensa e constante que Dalton manteve: mais de 600 cartas trocadas. Começa ainda antes da consagração nacional, quando Dalton era um autor em formação e Otto já o incentivava e lia seus originais com atenção. (Segundo apurou com o próprio Dalton e em arquivos diversos a pesquisadora Elvia Bezerra, os dois teriam sido apresentados apenas em 1955, por Fernando Sabino – que o curitibano conhecia de uma visita de Sabino e Millôr a Curitiba um par de anos antes.) Havia ali uma troca crítica intensa, mordaz, mas afetuosa.

Dalton também comentava os textos de Otto. Com o tempo, a relação perdeu a frequência: Otto se envolveu com cargos importantes na imprensa, depois na televisão, e Dalton sentia falta do contato mais contínuo. Mesmo assim, nunca deixou de irar o amigo. A morte de Otto, em 1992, aos 70 anos, certamente o abalou: não esperava que o amigo partisse mais de trinta anos antes dele próprio, Dalton.

O que mais despertou seu interesse, como jornalista e leitor, no diário de Trevisan?


Os diários revelam uma disciplina extrema e uma lógica de trabalho quase ritualística. Pequenas observações do dia a dia, relatos de encontros ou cenas ouvidas na rua, cadernos de notas que viravam esboços — tudo ali era matéria literária. Dalton a, a certa altura, a datilografar os diários: foram quase 3 mil páginas, muitas das quais renderam contos, crônicas, poemas em prosa – com mais espaço e escrevendo mais rápido, porque à máquina, ele já deitava ali versões quase finais de muita coisa que vimos aparecer nos livros dos anos 1990, sobretudo, e início dos 2000. Há também 31 cadernos e cadernetas manuscritos, e os diários da viagem à Europa, que são um documento fascinante da juventude dele. A constante é que nada era anotado gratuitamente: ele registrava ideias com intenção de transformar aquilo em literatura, mais cedo ou mais tarde.

Você afirmou, no início do ano, que o Dalton Trevisan leitor “renderia um livro à parte”. Por quê? Quais eram as anotações mais frequentes que ele fazia nos livros de seu acervo? Alguma foi particularmente surpreendente?


Os diários registram também suas leituras e releituras — além dos filmes que assistia, conhecido cinéfilo que era. Na biblioteca, ele anotava as datas em que terminava cada leitura na última página dos livros (deixou em doação a seleção final que guardou nas estantes até o fim: uns 2.400 livros). Isso permite rastrear sua trajetória como leitor ao longo de 80 anos. Surpreendente, para mim, foi encontrar um exemplar da Bíblia sublinhado, anotado com esferográfica azul, cheio de marcações e tiras de papel.

Um ateu declarado, mas leitor obsessivo da Bíblia — e isso ajuda a entender o tom bíblico, a força narrativa que permeia sua prosa. Também impressiona a persistência com certos autores: Machado de Assis, por exemplo — Dalton leu “Dom Casmurro” mais de dez vezes, entre 1941 e 2023. E com Salinger, fez uma leitura comparada entre o original e a tradução brasileira de “O apanhador no campo de centeio”, anotando possibilidades de tradução. Essa relação entre o Dalton leitor e o Dalton escritor é algo que a biografia tenta explorar com cuidado.

Acredita que sua biografia irá contrariar a imagem de Dalton Trevisan como um homem recluso e pouco sociável?


Sim, porque “recluso” é uma palavra muito ruim. Dalton circulava bastante, frequentava cinema, livrarias, conversava com gente nas ruas. Era diurno, insone, madrugador. Tinha uma rotina produtiva: escrevia de manhã e, depois que se aposentou do (meio-)expediente rotineiro na fábrica da família, cumprido até os anos 1980, caminhava à tarde. Pouco sociável... depende: ele mantinha relações sociais e familiares bastante normais, nem um pouco atípicas.

O problema é que, tímido como era de fato, ele começou a ter dificuldade com abordagens, digamos, invasivas. Mas isso não significa que fosse isolado. A máscara que criou foi também um mecanismo de defesa, como eu disse antes. O que a biografia tenta é justamente tirar os clichês da frente para mostrar que o que interessa saber: que tipo de relação humano ele manteve e o quanto isso forjou o escritor.

Chegou a ter contato pessoal com Trevisan? Como foi?


Não nos encontramos pessoalmente, mas nos comunicamos bastante durante os últimos 18 meses de vida dele, por intermédio da sua representante literária Fabiana Faversani. Ele me autorizou a ler a correspondência pessoal e respondeu a várias perguntas por áudio. Gravou um depoimento de mais de uma hora — inédito — que foi essencial para o argumento do livro. O o à documentação pessoal foi fundamental também, mas complementei com ampla pesquisa em arquivos de jornais, fontes secundárias, leitura paralela da obra.

O fato de ir lendo e relendo os contos enquanto conversava com ele, ainda que de forma indireta, foi um privilégio raro — e decisivo para a escrita da biografia. Mesmo com o muito amplo no final do processo, aquele primeiro momento de negociação, com ele aceitando pela primeira vez falar de si a partir de perguntas que eu lhe fazia com base na obra, já me forjara o personagem. E meu livro acaba sendo muito também a história dessa nossa breve relação.

Pelo que leu nos diários, cartas e outras anotações pessoais, Dalton Trevisan viveu para escrever? A literatura sempre foi a sua obsessão?


Sim, absolutamente. Apesar de ter tido uma vida convencional — família, formação universitária para uma profissão tradicional (que não quis exercer), trabalho, estabilidade —, desde os 13, 14 anos ele escrevia obsessivamente. Os diários e cadernos deixam isso evidente: não há registro gratuito. Ele mesmo se referia jocosamente a suas anotações como “notinhas frívolas”, mas eram ensaios disfarçados, testes de linguagem, sementes de contos futuros. A escrita era o seu dia. A literatura foi, claramente, sua grande missão.

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